Arthur Poerner*
Tal como a invasão norte-americana no Iraque, o golpe militar de 1964 se baseou em mentiras. Às jamais encontradas armas de destruição em massa de Saddam Hussein correspondeu uma suposta “comunização” em marcha no Brasil, com a iminência da “dissolução da família”, do “fim da propriedade privada”, da “subversão da lei e da ordem” e de outras balelas do gênero. Além das senhoras da Camde (Campanha da Mulher pela Democracia) e da classe média alienada que conseguiram mobilizar com as suas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, muita gente acreditou, e alguns, uma vez “salva a pátria”, chegaram mesmo a doar “ouro para o bem do Brasil”.
Como um companheiro de turma de rua em Copacabana, que, aos quase 30 anos, passava os dias jogando frescobol e pegando ondas e mulheres na areia, sem nunca ter-se preocupado com trabalho ou política. Daí o meu espanto ao reencontrá-lo, lívido, na tarde de 31 de março, em disparada para o Palácio Guanabara, onde iria defender o governador Carlos Lacerda das “hordas vermelhas”. E ele explicou: “se os comunistas tomarem o poder, vão cobrar ingresso na praia”.
As marchadeiras foram tão inocentes úteis quanto muitos militares, que apenas seguiram o rebanho, para não destoar e não chamar atenção. O corporativismo, uma das pragas nacionais, fez o resto. E as nossas Forças Armadas, ao invés de celebrarem os seus feitos, como, por exemplo, o extraordinário papel que desempenham, apesar das carências de todo o tipo, na Amazônia, passaram décadas comemorando, anualmente, um momento infeliz da sua história, em que se deixaram manipular pelas elites mais reacionárias. Pura arrogância e despreparo para a autocrítica, pois, afinal, as instituições, como os indivíduos, colecionam erros e acertos em suas trajetórias. A Igreja Católica, com a sua secular sabedoria política, nem quer lembrar da Inquisição, assim como qualquer boêmio procura esquecer a noite em que bebeu mal, e a garotada de hoje, os momentos em que “pagou mico”.
O golpe se consumou em 1º de abril, “dia da mentira” – que, como se sabe, tem pernas curtas -, para frustração dos que resolveram batizá-lo de “Revolução de 31 de Março”. No caso, nem foram tão curtas, mas, 45 anos depois, já não há quem se disponha a movê-las para recordar o nefasto acontecimento, um retrocesso na nossa caminhada, como nação, para a democracia; nem, excetuado o ex-ministro Jarbas Passarinho, quem se proponha a justificá-lo e defendê-lo abertamente. Cada vez mais raros são os “revolucionários” de abril ainda assumidos: virou problema no currículo.
Não há mesmo o que defender. Inaugurada com brutal violação da ordem constitucional, a ditadura foi uma sucessão de desatinos de usurpadores, que, tirante o combate ao comunismo e a submissão às ordens dos EUA – imediatamente explicitada com o rompimento das relações diplomáticas com Cuba e a derrogação da lei que limitava a remessa de lucros ao exterior -, não tinham sequer um projeto para o país. Um golpe contra a democracia, contra as reformas de base do presidente João Goulart, contra a ascensão social das massas, contra a política externa independente e contra o debate nacional em que o Brasil se encontrava empenhado no início dos anos 60 não podia ser uma revolução, como a objetividade do presidente Geisel reconheceria com atraso.
Patrocinado por interesses estrangeiros, com o governo norte-americano lhe assegurando apoio, inclusive com o eventual suprimento de combustíveis pela Esso, se houvesse resistência, o golpe só deixou alguma saudade entre veteranos de clubes militares. Da ditadura que engendrou, o que restou de melhor, depois de 20 anos, 11 meses e 15 dias de violência e desmandos, foi a valorosa geração que se formou na luta pela sua derrubada. Como o reitor da PUC-RJ, padre Jesus Hortal, acaba de salientar, em entrevista ao Jornal do Brasil, os anos 70 “foram a melhor fase da igreja brasileira, combativa na luta pela democracia e pelo fim do regime instaurado em 1964”.
Por tudo isso, é chegada a hora de as Forças Armadas agirem como instituições nacionais permanentes do Estado, não mais como corporações à parte, também no caso dos arquivos da repressão, liberando-os, para que tantas famílias possam encontrar os seus mortos; e eu consiga, afinal, entender porque, em 1966, aos 26 anos, me tornei o mais jovem brasileiro com direitos políticos suspensos. Na própria redação do Correio da Manhã, o Antonio Callado, o Edmundo Moniz e outros tinham muito mais tempo de serviço e luta pela democracia, a ponto de Callado, sentindo-se preterido pela minha punição, ter escrito um sarcástico artigo de protesto, em que só faltou reivindicar para si a láurea que também o ornaria adiante, logo após o AI-5.
Os militares hoje na ativa nada tiveram a ver com o golpe e com o comando da ditadura que se seguiu. Não é justo constrangê-los a compartilhar, em nome de errônea e falsa interpretação de camaradagem de caserna, os erros e crimes – muitos deles contra a humanidade, imprescritíveis, como a tortura – de antecessores. O entulho autoritário tem que ser retirado de todos os nichos em que ainda é escondido e surrupiado ao conhecimento público e das próprias instâncias superiores, para a devida reciclagem, pois é parte, queiramos ou não, da nossa história. Mantê-lo sob censura, a estas alturas, é apenas mais um ato de violação, do direito à verdade e à memória nacional.
* Arthur Poerner é jornalista, participou do evento "1968 - Uma Liberdade com Expressão" e colabora com o grupo Circo Industrial
Um comentário:
Poerner é uma figura muito interessante, além de um grande exemplo.
Salve o Poerner! \o/
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